Entrevista Exclusiva com Lúcia Garcez Lohmann: Dia internacional da biodiversidade

‘Mercado e ciência precisam conversar’

Diretora executiva da ATBC (“Association for Tropical Biology and Conservation”) desde 2019, Lúcia Garcez Lohmann demonstra entusiasmo ao falar sobre a biodiversidade e preocupação no que se refere à conservação de espécies: “Na Associação, fomentamos a conexão entre a ciência e tomada de decisão. Queremos unir conhecimentos, cruzá-los entre setores e transformá-los em soluções”. 

Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo, Lúcia tem mestrado e especialização em Biologia Tropical e Conservação pela University of Missouri-St.Louis e doutorado em Ecologia, Evolução e Sistemática pela mesma universidade. Depois de completar um pós-doutorado no CCSD (“Center for Conservation and Sustainable Development”) do Missouri Botanical Garden, assumiu o cargo de Professora no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Recentemente foi para Berkeley, Califórnia, onde atua como Diretora dos Herbários UC/JEPS e Professora Titular do Departamento de Biologia Integrativa da University of California, Berkeley. Sua pesquisa busca entender a origem e história evolutiva da biodiversidade, com um foco especial na Amazônia, onde desenvolve pesquisas de campo desde 1993. Os resultados da sua pesquisa têm sido utilizados para apoiar conservação e políticas públicas. 

Em entrevista exclusiva para a DEEP, Lúcia fala de suas expectativas, do crescente engajamento do setor privado na preservação do meio ambiente, da necessidade de políticas públicas eficazes e importância da ciência para a tomada de decisões. 

– Por que escolheu a biologia?

O meio ambiente sempre foi algo muito importante para mim. Na infância, adorava brincar numa área de floresta nativa na chácara do meu avô, em São Roque, no interior do Estado de São Paulo. Acho que foi ali que nasceu minha paixão pela natureza. Durante o Ensino Médio, realizei viagens para diversos Parques Nacionais Brasileiros e me encantei pela botânica. Entrei no curso de Ciências Biológicas da Universidade de São Paulo em seguida e, desde então, a botânica passou a ter papel central na minha vida. Passei a falar sobre plantas, sustentabilidade e a preservação do meio ambiente, quando quase ninguém discutia o tema. Minha dedicação à biologia era vista com certo espanto. Eu comecei a trabalhar na Amazônia em 1993, pouco depois da Eco-92. A partir dali, as coisas começaram a mudar, e as pessoas passaram lentamente a se interessar pelo assunto. Mesmo assim, mostrar preocupação com a Amazônia era quase o mesmo que falar sobre um planeta distante. A mudança só se deu na última década, quando começamos a sentir na pele os efeitos das mudanças climáticas globais.

– E as coisas mudaram muito?

Podemos dizer que demorou para “cair a ficha”, mas, aos poucos, a sociedade e o setor privado começam a se dar conta da gravidade da crise climática e dos riscos associados à perda da biodiversidade. Tem sido interessante acompanhar essa transição. Hoje em dia, praticamente todos os setores estão conectados à biologia e às questões ambientais de alguma forma. A discussão tomou conta de diferentes atividades, inclusive por conta do trabalho desenvolvido por empresas como a DEEP. Mensurar o trabalho das corporações no meio ambiente é essencial para mitigar os impactos negativos das suas atividades. A pesquisa básica sobre biodiversidade traz informações críticas para que possamos encontrar soluções conjuntas. A preservação do meio ambiente deixou de ser problema de um pequeno grupo, e passou a ser um problema de todos.

– O que falta mudar?

Muita coisa! Estamos vendo os impactos das mudanças climáticas globais e percebendo como estamos despreparados para lidar com as consequências. Além disso, grande parte das discussões ambientais estão centradas na redução e compensação das emissões de CO² na atmosfera. Mas a pauta precisa se tornar mais abrangente, envolver biodiversidade, tema sobre o qual ainda não conhecemos muito. Faz pouco tempo que a biodiversidade passou a ser incorporada ao debate – e o que se fala ainda é muito superficial. 

– E esse é um dos objetivos da luta pela conservação dos trópicos?

Sim! Temos que acelerar o conhecimento da biodiversidade nas regiões tropicais e entender melhor os processos ecológicos e evolutivos atuantes nesta região para que possamos criar melhores modelos de serviços ecossistêmicos. Grande parte dos modelos que usamos são baseados em dados coletados para o Hemisfério Norte, regiões com biodiversidade e interações entre espécies reduzidas. Nosso conhecimento sobre a biodiversidade tropical é ainda muito limitado. Por exemplo, uma das minhas primeiras expedições de campo foi para a Reserva Ducke na Amazônia Central. Fui realizar um inventário  da família dos ipês (Bignoniaceae), grupo de minha especialidade. A lista de espécies da Reserva incluía apenas 15 espécies de Bignoniaceae mas, este número aumentou em 10 vezes, chegando a 150 espécies para o local após 2 anos de trabalho de campo. Isso, numa das regiões mais bem estudadas da Amazônia! Brinco com meus alunos que a Amazônia é um centro de inovação, porque quase tudo é novo ou pouco conhecido. E esta afirmação não é exagero, pois coletamos espécies novas em praticamente todas as expedições que realizamos na região. Estima-se que apenas 10% da biodiversidade tropical tenha sido documentada – essa porcentagem é ainda menor na Amazônia. Precisamos urgentemente de dados mais robustos para que possamos elaborar melhores políticas públicas, planos de manejo e estratégias para a conservação.

– Qual o foco da sua pesquisa em biodiversidade?

Minha pesquisa é ligada à taxonomia, campo da ciência que dá nome, descreve e classifica toda a diversidade biológica. Nós descrevemos espécies com base na morfologia, e utilizamos dados genômicos para reconstruir o parentesco e história evolutiva de linhagens variadas. Em seguida, combinamos estas informações com dados climáticos e geológicos e reconstruímos a história da vida na Terra ao longo de milhares de anos. Por exemplo, ao estudarmos a história das angiospermas ao longo dos últimos 140 milhões de anos, podemos entender como diferentes espécies se adaptaram às mudanças climáticas e prever como poderão se adaptar no futuro. Grande parte da minha pesquisa foca na origem e evolução da Amazônia – buscamos entender como este bioma mega-diverso se formou ao longo dos últimos 100 milhões de anos.

– Como está atualmente o cuidado com a preservação da Amazônia?

A Amazônia é um elemento crítico do sistema climático da Terra, cujo destino está entrelaçado com o da saúde planetária do mundo todo. É o ecossistema subcontinental mais rico em espécies do mundo e abriga mais de 10% de todas as espécies de plantas e vertebrados, concentrados em apenas 0,5% da superfície terrestre. A floresta Amazônica também contribui com cerca de 16% de toda a produtividade fotossintética terrestre, regulando fortemente os ciclos globais de carbono e água. Os ecossistemas amazônicos estão sendo rapidamente degradados pelas atividades humanas. Quase 20% da floresta original já foi desmatada e cerca de 15% substituída pela agricultura. Após milhões de anos atuando como um imenso reservatório global de carbono, o cenário está próximo a uma inversão, com o risco da floresta Amazônica passar a constituir uma fonte de carbono para a atmosfera. Algumas regiões já fizeram essa transição, com a respiração e queima da floresta superando a fotossíntese florestal. A degradação também está levando a uma enorme perda de biodiversidade. Os ambientes amazônicos estão sendo degradados pelas atividades humanas em um ritmo muito acima de qualquer coisa previamente conhecida.

– Como é possível recuperar uma floresta?

A falta de uma verdadeira dimensão da biodiversidade total das florestas dificulta muito sua recuperação. Começamos com a visão de que só plantar árvores já seria o suficiente. Quanto mais estudamos as espécies e suas interações, mais verificamos que vamos precisar de um número cada vez maior de espécies (e das interações entre elas!) para reconstruirmos ambientes verdadeiramente saudáveis. Mesmo em locais com florestas aparentemente intactas, temos observado uma queda imensa no número de insetos, colapsando redes de interações e o funcionamento de ecossistemas inteiros.

– Você acredita que estamos virando esse jogo?

Há 30 anos, eu tinha a impressão de que estava falando com as paredes. Isso está mudando. Ao longo dos últimos anos, as empresas estão passando a se preocupar com o meio ambiente e buscando mensurar o impacto de suas atividades, um aspecto crítico para que possam agir de forma responsável. Parte das corporações está começando a efetivamente investir neste tema, e não apenas promover propostas superficiais revestidas de boas intenções. Aos poucos, estão passando a se orientar pela ciência, utilizando dados cada vez mais robustos. Estudos científicos recentes também trazem a mensagem de que os esforços na conservação têm tido um impacto real, ajudando substancialmente a prevenir o declínio da biodiversidade. Em outras palavras, estamos observando mudanças positivas, ainda que tímidas. O impacto das mudanças globais será cada vez mais severo, levando a desafios inimagináveis. A próxima década será decisiva.

– Como estão os estudos em relação a outros biomas no Brasil?

Todos os biomas brasileiros prestam serviços ecossistêmicos importantes. Se pensarmos bem, a América do Sul inteira era coberta por uma única floresta há cerca de 100 milhões de anos, indicando que os ecossistemas estão interligados. Quando surgiu a diagonal seca, com a formação do Cerrado, da Caatinga e do Chaco, a Amazônia se separou da Mata Atlântica. Por conta dessa história conjunta, os biomas compartilham espécies e a sobrevivência de um bioma afeta diretamente a sobrevivência do outro. As espécies também estão conectadas e a sobrevivência delas é interdependente.

– O que fazer para avançar mais em legislação? Os decretos recentes ligados ao meio ambiente são relevantes?

No Brasil, o meio ambiente sofre com a descontinuidade das políticas públicas. Para quem trabalha com biodiversidade, num país como o nosso, é uma lição diária de humildade. Estamos sempre com a sensação de recomeço, vivemos uma instabilidade permanente.  Faz tempo que a ciência nos mostra que emergências climáticas como as que estamos vendo no Rio Grande do Sul se tornarão cada vez mais frequentes. Estes dados não podem mais ser ignorados. Precisamos urgentemente de políticas públicas de curto, médio e longo prazo, que valorizem uma economia de baixo carbono e o desenvolvimento sustentável. 

– O mercado de carbono precisa conversar com vocês cientistas?

Sem dúvida. Mercado e ciência precisam andar lado a lado, desenvolvendo trabalhos colaborativos e buscando soluções conjuntas. Interações entre Universidades Públicas, onde a maior parte da pesquisa científica é produzida, e o setor privado ainda são raras – quase toda pesquisa científica é financiada por entidades públicas. Maior integração entre setores é de extrema importância para inovação, empreendedorismo, soluções baseadas na natureza e sustentabilidade.

– Como usar a biodiversidade de maneira interessante, produtiva, sem abrir mão da sustentabilidade?

Precisamos de uma visão de longo prazo e um caminho promissor é a bioeconomia, que utiliza novas descobertas científicas e recursos renováveis para aumentar a produtividade agrícola, explorar produtos florestais alternativos, desenvolver novos biocombustíveis, descobrir novos medicamentos e elaborar mecanismos para reciclagem, redução da pegada verde e conservação da natureza. A capacidade da bioeconomia é enorme, mas a pesquisa científica ainda está dando seus primeiros passos. Parcerias entre Universidades e Indústria são críticas para o desenvolvimento de novas tecnologias que podem abrir portas inimagináveis para a Indústria, levando a soluções duradouras para os grandes problemas ambientais. É um momento muito oportuno para deslanchar projetos e parcerias entre os setores público e privado. Estas parcerias abrem novas oportunidades para a descarbonização e desenvolvimento de novos produtos para mitigar os desafios ambientais que nos esperam. No entanto, é a primeira vez que estamos fazendo esse tipo de trabalho, o que significa que ainda não é trivial – precisamos ser criativos, colaborativos e rápidos pois os desafios ambientais estão cada vez mais próximos. Um ponto é inegável e inegociável: o ganho econômico no curto prazo não pode justificar o comprometimento da qualidade do meio ambiente e da vida no planeta!

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