Entrevista com Isabela Damaso
Há mais de 28 anos no Banco Central, Isabela Ribeiro Damaso Maia está à frente da área de Sustentabilidade desde maio do ano passado, após longo período respondendo pela área de risco da instituição.
Em entrevista exclusiva para o blog da DEEP, Isabela falou sobre suas experiências e expectativas para a consolidação de uma política de responsabilidade social, ambiental e climática no setor financeiro brasileiro. Confira.
Começando por um encontro marcante. Como foi conhecer o Prêmio Nobel da Paz Muhammad Yunus? Existe uma sintonia entre o compromisso dele de acabar com a pobreza através do acesso da população de Bangladesh ao crédito e o que a Agenda BC# chama de democratização financeira?
Foi uma surpresa grande quando soube da participação dele na reunião inaugural do Comitê da Economia de Impacto.
Foi um privilégio poder estar pessoalmente com ele e ouvir sua palestra, com exemplos inspiradores de como podemos fortalecer o microcrédito, promover o trabalho social e o bem estar da população nesse mundo onde tantos passam necessidades básicas.
Sabemos que é necessário abordar questões estruturais para criar um impacto duradouro e que estratégias abrangentes no segmento financeiro vão além do acesso ao crédito. Promover a educação financeira, por exemplo, é uma ferramenta fundamental para enfrentar a pobreza global e alcançar o desenvolvimento sustentável.
É fato que o acesso a serviços financeiros pode capacitar indivíduos de comunidades marginalizadas, permitindo iniciar e expandir pequenos negócios.
Todos esses, são temas estratégicos e prioritários para o BC. A Agenda BC# tem 5 pilares, sendo um deles dedicado à inclusão e outro à educação, com inúmeras iniciativas do BC.
Se pensarmos no PIX, por exemplo, foi uma iniciativa do pilar competitividade da Agenda BC# que se tornou um marco significativo para a inclusão financeira no Brasil. Sua implementação revolucionou as transações diárias, oferecendo uma alternativa eficiente ao proporcionar um meio de pagamento instantâneo e acessível, o PIX tornou-se uma ferramenta crucial para ampliar o acesso a serviços financeiros.
A natureza inclusiva do PIX também reduz barreiras para empreendedores de pequeno porte, facilitando a realização de transações comerciais de maneira mais eficiente.
Os resultados são impressionantes, com 71,5 milhões de novos usuários incluídos com o Pix, considerando usuários que nos 12 meses anteriores ao Pix não utilizavam TED e passaram a utilizar o Pix após seu lançamento, 143 milhões de pessoas e 13,1 milhões de empresas usam o Pix.
Este encontro aconteceu numa reunião do Comitê de Economia de Impacto. Qual a sua avaliação e expectativas sobre esse comitê?
O Comitê de Economia de Impacto desempenha um papel muito importante no cenário econômico ao concentrar esforços em promover práticas que buscam não apenas resultados financeiros, mas também benefícios sociais e ambientais.
A evolução da antiga Estratégia de Investimentos e Negócios de Impacto, lançada pelo governo federal brasileiro em 2017, para a nova Estratégia de Economia de Impacto, instituída pelo Decreto n. 11.646/23, representa uma profunda transformação no nosso entendimento econômico. Passamos de uma visão restrita a nichos de mercado para um modelo econômico que abraça sua responsabilidade social e ambiental.
Um modelo econômico não pautado apenas pela busca de lucros, mas também de geração de impacto positivo, social e ambiental, como parte intrínseca de um caminho rumo a um futuro melhor para todos.
O BC não participava do Comitê antes e passou a integrar agora em 2023. Acho muito importante a participação do BC e fico feliz de representar a instituição nesse trabalho. Acredito que poderemos contribuir em várias frentes de trabalho do BC, no microcrédito e no cooperativismo, entre outras.
A visão compartilhada na sala reforçou o comprometimento coletivo em enfrentar os desafios por meio de iniciativas ambiciosas, que tendem a solidificar a inclusão e a educação financeira como uma poderosa ferramenta para transformar vidas e comunidades.
No dia do encontro, foi lançada a consulta pública, encerrada em 19/novembro, do Plano Decenal 2023 – 2032 da Estratégia Nacional de Economia de Impacto (Enimpacto) com metas bem audaciosas. Brasil afora, existem muitas iniciativas sustentáveis e o Comitê pretende ampliar a participação do Brasil nessa modalidade de investimento, ampliar o alcance dessas iniciativas e gerar escala.
O Ministério da Fazenda acaba de lançar a Taxonomia Sustentável Brasileira. Como essa iniciativa contribui para o objetivo de direcionamento de recursos para o desenvolvimento sustentável?
A Taxonomia Sustentável Nacional desempenha um papel crucial na promoção de uma economia sustentável e responsável. Ao refletir objetivos estratégicos do país e fornecer um sistema claro de classificação, permitirá que investidores, agentes financeiros e reguladores entendam o impacto das atividades econômicas, contribuindo para o direcionamento de recursos para projetos sustentáveis.
O que já está pronto e foi colocado em consulta pública foi um plano de ação para construção da taxonomia, que mostra as linhas gerais, os principais elementos que devem compor a taxonomia. A taxonomia propriamente dita está prevista para começar a ser elaborada em janeiro, com expectativa de conclusão em novembro de 2024. É um cronograma bem audacioso, muito apertado. A Colômbia, por exemplo, levou dois anos para fazer a sua taxonomia. Temos um prazo de 10 a 11 meses de trabalho, mas esperamos nos beneficiar das lições aprendidas de outros exercícios.
A taxonomia pretende endereçar os principais setores emissores e possui vários objetivos ambientais, climáticos e sociais, que serão trabalhados em etapas. O BC faz parte do grupo de trabalho desde a sua concepção, irá compor o comitê supervisor e participará de alguns grupos técnicos.
Uma taxonomia clara e abrangente fornece um conjunto de critérios e definições padronizados para identificar e classificar atividades economicamente sustentáveis. Isso cria transparência e facilita a alocação eficiente de recursos financeiros para projetos que atendam aos objetivos estratégicos da taxonomia. IFs e investidores podem, assim, tomar decisões informadas, alinhando seus investimentos com metas sustentáveis.
Além disso, uma taxonomia sustentável cria um ambiente favorável para o desenvolvimento de instrumentos financeiros específicos, como títulos verdes e sociais, e de políticas públicas que podem criar incentivos e/ou direcionar recursos para o atingimento de objetivos sociais, climáticos ou ambientais nacionais.
Portanto, a taxonomia não apenas orienta a alocação de recursos, mas também impulsiona a inovação financeira e, diria tb tecnológica, contribuindo para o avanço de uma economia mais sustentável.
O mercado financeiro tem um papel muito importante na aceleração da agenda de descarbonização, assim como na agenda social. Como você vê hoje as atuações do Brasil e do BC?
O Banco Central do Brasil tem um papel destacado no cenário internacional, não só na agenda de sustentabilidade, mas também em outras frentes de trabalho. Os temas ambientais não são novos na nossa agenda de trabalho, mas se intensificaram e ganharam maior destaque com a criação do pilar de Sustentabilidade na Agenda BC#, a agenda estratégica do BC.
Temos participado intensamente de discussões em diversos fóruns internacionais, entre eles a NGFS – Network for Greening the Financial System, um grupo de bancos centrais e supervisores. A NGFS foi criada por 8 bancos centrais em 2017, de forma voluntária, e hoje já conta com mais de 120 participantes.
Várias publicações da NGFS destacam nossas ações como referência. Existem ainda alguns rankings internacionais que buscam avaliar a maturidade dos bancos centrais ou dos reguladores financeiros em temas de sustentabilidade, e nós temos sido muito bem avaliados.
Sobre o Brasil, sem dúvidas que possui todas as condições necessárias para exercer um papel de protagonismo em sustentabilidade no cenário internacional. O país tem potencial significativo para se tornar uma potência sustentável, aproveitando sua vasta extensão territorial e recursos naturais.
A começar por sua rica biodiversidade, com uma extensa cobertura de florestas tropicais (sendo a Amazônia uma peça central neste contexto). Destaca-se também o setor de energia, com uma matriz energética limpa de grandes proporções quando comparadas a outras economias, e investimentos crescentes em fontes renováveis, como energia solar e eólica. Soma-se a isso, seu crescente comprometimento com práticas e políticas ambientalmente responsáveis.
Junto com o BC#Sustentabilidade, foi criado o Bureau Verde, um sistema que permite às instituições financeiras acessar informações integradas de sete bases de dados do governo para a concessão de financiamentos para agricultores e pecuaristas. Como está este projeto?
Essa é uma das principais ações da Agenda de sustentabilidade e que ainda é pouco conhecida. Entre outras funcionalidades, o Bureau de Crédito Rural Sustentável verifica automaticamente a conformidade das leis ambientais e sociais na concessão do crédito rural. É uma ação que toca em temas como desmatamento e Amazônia, que é sempre um foco de interesse. Organismos internacionais e outras instituições se surpreendem com a existência desse trabalho e com o alcance dessa ferramenta.
É uma ação em andamento que permite a identificação automática de terras com restrições de acesso ao crédito rural em razão de disposições legais ou infralegais relativas a questões sociais, ambientais e climáticas. É importante destacar que a caracterização baseia-se em restrições já impostas pela legislação ambiental. Portanto, o Bureau fortalece o cumprimento das leis ambientais, funcionando como segunda linha de defesa, bloqueando as operações no início, de forma automática e em tempo real.
Para isso, o Sistema Informatizado de Crédito Rural do BCB acessa pelo menos 6 bases de dados distintas de entidades governamentais:
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Ministério da Justiça – imagens de satélite de alta resolução
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Serviço Florestal Brasileiro – registro do CAR e reserva legal APP
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ANA – outorga de água
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ICMBio e Ibama – unidades de conservação e áreas embargadas
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Funai – terras indígenas
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Incra – Áreas de reforma agrária e Terras quilombolas
Transitam pelo sistema de crédito rural cerca de 2MM de operações por ano e, em 2022, foram concedidos R$ 310 bilhões (USD 6 bi) de crédito rural.
Um dos resultados esperados do Bureau Sustentável é fomentar as condições para uma agricultura “mais verde”, trazendo mais informação e transparência ao sistema de crédito rural.
O Banco Central acrescentou a dimensão Sustentabilidade na Agenda BC# em 2020. Qual a sua análise dos avanços e resultados alcançados nesses três anos?
A agenda de sustentabilidade do BCB tem demonstrado um progresso notável na integração de considerações ESG em suas operações e políticas.
Ao longo dos últimos anos, o BCB tem adotado medidas proativas para promover a sustentabilidade no setor financeiro brasileiro, não só incentivando, mas também exigindo a incorporação de critérios ESG por parte das IF em suas práticas de gestão e divulgação de informações.
Esse esforço visa não apenas fortalecer a resiliência do sistema financeiro diante de riscos relacionados ao clima e a questões sociais, mas também contribuir para uma economia mais sustentável e inclusiva.
Os resultados visíveis da Agenda do BC incluem maior conscientização e adesão do setor financeiro a práticas sustentáveis, que devem refletir em políticas mais responsáveis de concessão de crédito e investimentos.
Além disso, a liderança do BC tem influenciado positivamente as discussões em nível nacional sobre a importância da sustentabilidade para o desenvolvimento econômico a longo prazo.
Considerações ESG fazem parte, e cada vez mais, das nossas apresentações. Considerações ESG estão em nossas análises, nossas modelagens, em práticas internas, estão no processo decisório do BC e na nossa prestação de contas à sociedade, com o RIS – Relatório de Riscos e Oportunidades Sociais, Ambientais e Climáticas, publicado anualmente e que consolida todas as iniciativas do BC no tema, sejam elas voltadas ao SFN ou medidas internas.
Quais são os principais desafios para que possamos avançar mais rapidamente na agenda ESG? Como o Banco Central está acelerando – ou pode acelerar esta agenda?
Temos participado de várias iniciativas do Governo, como o Comitê de Economia de Impacto, coordenado pelo MDIC, a construção da Taxonomia Sustentável Nacional, sob coordenação do Ministério da Fazenda, o Bureau de Crédito Rural Sustentável trabalha em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, entre outras. Na minha opinião, um movimento coordenado do Governo e da sociedade é fundamental para avançarmos nessa agenda..
O Sistema Financeiro Nacional tem um papel crucial nessa jornada da descarbonização e o Banco Central tem procurado fazer a sua parte – estabelecer a base regulatória, promover a transparência dos dados, assegurar que setor financeiro que seja resiliente aos riscos ESG, climáticos, sociais e ambientais, etc.
São muitos os desafios, ainda não temos padrões internacionais estabelecidos, existe falta de dados e de consenso com relação à melhor forma de mensurar e de gerenciar os riscos ESG etc. A cooperação é fundamental para avançarmos na construção das melhores práticas, em um movimento coordenado e global.
Segundo o relatório “The Time to Green Finance” do CDP, as emissões financiadas são 700 vezes maiores do que os impactos diretamente causados pelas instituições financeiras. Ou seja, quase tudo que as instituições financeiras emitem está associado ao financiamento de atividades poluidoras. Na sua opinião, qual a importância de se medir emissões financiadas, ter esse olhar para a carteira de clientes?
A mensuração dos impactos ESG nas carteiras da IFs enfrenta desafios globais complexos.
Um dos principais obstáculos é a falta de dados disponíveis. Mas acima disso, a falta de padrões universais e métricas consistentes para que as informações sejam divulgadas e que permita avaliar o desempenho ESG é um outro complicador.
A diversidade de abordagens torna difícil a comparação e consequentemente a avaliação, gestão e a tomada de decisão. (seja para o investidor, para o intermediário financeiro ou para o regulador/supervisor)
Além disso, a natureza dinâmica dos fatores ESG representa um desafio adicional. As questões ambientais, sociais e de governança evoluem constantemente, demandando uma abordagem ágil e adaptável na avaliação do impacto das carteiras.
A mensuração eficaz exige também considerações de contextos específicos de setores e regiões, o que complica ainda mais. Além disso, não temos dados históricos, precisamos analisar com base em cenários futuros de longo prazo.
Enfrentar esses desafios exige esforços colaborativos globais para promover a transparência e fortalecer a integridade das informações, oferecendo uma visão mais holística do impacto ESG na carteira das instituições.
O Banco Central tem contribuído intensamente nas discussões da esfera internacional com esse esforço para o estabelecimento, por standard setters internacionais, de padrões robustos e que representem a melhor prática.
Também temos contribuído no cenário nacional, em discussão com outros reguladores e outras entidades do governo
Qual é a sua visão sobre os desafios globais de mensuração dos impactos das emissões financiadas das carteiras das instituições financeiras? Qual a importância de se buscar dados cada vez mais confiáveis e comparáveis?
Os dois últimos Relatórios de Estabilidade Financeira publicados pelo BC, de Nov/22 e de Maio/23, trouxeram exercícios sobre o impacto de eventos climáticos na carteira dos bancos.
No relatório de novembro de 2022, analisamos a exposição do sistema como um todo a riscos de transição. Com relação a riscos físicos, foi avaliado o cenário de uma seca extrema. Em maio deste ano, o mesmo exercício foi realizado para um cenário de chuvas intensas.
Acredito que o BC é um dos poucos bancos centrais que já tem alguma informação em relação a isso. São exercícios iniciais, cujos resultados devem ser analisados com cautela dadas as limitações de modelagem ainda existentes, mas estamos constantemente trabalhando em aprimoramentos, e acreditamos que esses modelos evoluirão bastante ao longo do tempo.
Recentemente, André Corrêa do Lado, secretário de Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores, declarou que o objetivo da COP28 era "aprovar o que é conhecido como o Balanço Global do Acordo de Paris” e que a expectativa da COP29 é “definir novo patamar para financiar a ação climática”, para que, na COP30, “os países apresentem suas novas NDCs". Quais são as suas expectativas em relação aos próximos anos?
Houve um grande engajamento do setor financeiro de uma forma geral na COP26, em Glasgow e vejo o setor financeiro cada vez mais envolvido nessa discussão. Mas ainda há muito para avançarmos em relação ao acordo de Paris. O fluxo de financiamento que era esperado, principalmente para as economias emergentes, ainda não aconteceu. Como fazemos isso acontecer, como podemos acelerar esse processo?
Espero que, após a COP28, se fortaleça ainda mais a conscientização sobre o engajamento necessário para desenvolvermos soluções e oferecermos a infraestrutura para que se possa avançar mais rapidamente.
O BC tem buscado contribuir de forma efetiva e com ações concretas como conversamos, e, em 2023, inclusive, lançamos uma nova frente de trabalho que busca alinhar a agenda ESG aos avanços da nossa agenda tecnológica. A DEEP inclusive foi uma das convidadas para compor uma mesa redonda que organizamos com o objetivo de discutirmos os desafios e as possíveis soluções de como o setor financeiro pode contribuir para avançarmos mais rápido.
Temos que lembrar que, em 2024, estaremos na presidência do G20, e que o tema biodiversidade deve ganhar mais destaque na trilha financeira, é a nova fronteira nessa discussão. Além disso, o país está se preparando para sediar a COP30, em Belém em 2025. Ou seja: o tema está no centro das atenções, temos todos muito trabalho pela frente, mas acredito que teremos muitos avanços nos próximos anos!