Mulheres de Impacto: Marília Cunha Lignon

A ciência de viver com o pé na lama

Tinha tudo para ser diferente. A família em peso trabalhava em profissões da área de humanas, ninguém tinha qualquer ligação com biologia ou outra área ligada às ciências naturais. No entanto, desde criança, a carioca Marília Cunha Lignon sabia que sua vocação estava ligada à natureza, mais especificamente ao contato com o mar. “Desde muito cedo, era parte da minha vida, tanto observar a paisagem quanto me interessar por fauna e vegetação”, conta.

Em seu percurso, Marília vem acumulando uma invejável relação de títulos e experiências. Hoje, para citar apenas duas de suas ocupações, é professora de oceanografia para os alunos do curso de Engenharia de Pesca da UNESP e também pesquisa a dinâmica do ecossistema manguezal, com muito trabalho de campo.

A dedicação aos manguezais se intensificou em 2015, com a formação de um grupo de mulheres dedicado ao estudo nas costas paulistas. Por sua trajetória, a professora se tornou referência para outras mulheres da área e inspiradora para as mais jovens.

– Quando percebeu que queria ser bióloga?

Minha família era toda da área de humanas. Mesmo assim, meu interesse sempre foi por plantas, bichos, natureza, paisagens, enfim, ambientes ao ar livre, principalmente na zona costeira. Fiz minha graduação em Ciências Biológicas pela UERJ e não parei mais de estudar, de buscar conhecimento e também a melhor forma de transmiti-lo.

– Então, o meio ambiente sempre fez parte da sua vida?

Está tudo interligado. Meu interesse é pelo meio ambiente e, mais especificamente, pelo oceano, a zona costeira, a fauna e a biodiversidade marinha. Aliás, estamos na Década do Oceano (2021 a 2030), e é fundamental sensibilizar as pessoas sobre a importância dos mares para a sobrevivência no planeta, qualidade de vida das pessoas, equilíbrio de temperatura na Terra, entre outros. 

Logo no primeiro semestre da graduação, fiz um curso de mergulho. Achei que seria útil e, foi mesmo. Comecei estudando anatomia de tubarão. Mas gostava mesmo era de ver os pescadores artesanais chegando da pesca. Pegava com eles o que não era aproveitado para o comércio, as partes descartadas. Usava para analisar a anatomia, comparar, aprender…

Depois, fui para França com meus pais. A previsão era de ficar um ano, mas acabei estendendo a permanência.  Foi enriquecedor para mim. Lá, pude estudar o comportamento de golfinhos em cativeiro. Quando voltei ao Brasil, me envolvi rapidamente com quem trabalha em educação ambiental. O Rio de Janeiro, pela diversidade, se mostrou ótimo para isso. Num momento, estava numa restinga, em seguida num manguezal e assim por diante. Quis ampliar a pesquisa e comecei a fazer mestrado no Instituto Oceanográfico da USP, em São Paulo.

– O seu interesse por manguezais nasceu daí?

Foi só botar o pé na lama pela primeira vez que não parei mais. Fiquei encantada! São verdadeiros berçários, áreas de muita diversidade biológica. Além dos aspectos ambientais, há uma ligação direta entre a vida do manguezal e as questões sociais. Na região Sul de São Paulo, áreas mais extensas e produtivas de manguezais,  os pescadores locais dependem desse ecossistema saudável, assim como o turismo e outras atividades econômicas. São pessoas que viajam  a lazer, buscando a pesca amadora, e que têm poder aquisitivo de médio para alto. Alugam barcos e se hospedam em pousadas, movimentando assim a economia de regiões como a de Cananéia.

– Qual é a realidade dos manguezais da região sul de São Paulo?

Temos dois contextos diferentes nesse trecho da costa paulista. Na região de Iguape, setor norte, as condições ambientais estão empobrecidas, em função dos impactos provocados por alterações hidrológicas, o que reflete diretamente nos recursos pesqueiros. Por outro lado, na região de Cananéia (setor sul), os manguezais conservados estão mantendo a produção pesqueira. Nessa região são 32 espécies de pescado que dependem dos manguezais: ostras, caranguejos, camarão-estuarino e muitas espécies de peixes (robalo, parati, carapeba, bagre-amarelo, linguado, entre outros).O manguezais é diversidade:  tem superfície para as ostras se fixarem, esconderijos para pequenos alevinos, ponto para fazer toca de caranguejo etc. São espécies diferentes, que vão usar o mangue de forma diferente e permitir que diversas comunidades humanas, como caiçaras, quilombolas e indígenas, façam uso dele também. O manguezal é parte da cultura brasileira. Manguezal não é um sistema isolado, mas interligado com a geração de vida para os oceanos.

Em termos de governança, o que fazer para termos mais “Cananeias”?

Os manguezais são protegidos por lei federal, não podem se transformar em áreas de indústrias, portos, marinas, nem resorts. É nossa tarefa divulgar a todas as camadas da população o que deve ser feito para conservar os manguezais. Para a maior parte das pessoas, a ficha ainda não caiu. Somos uma referência mundial em biodiversidade. Temos a segunda maior área de manguezal do planeta e o trecho mais extenso contínuo de manguezais do mundo, nas regiões Norte e Nordeste do país. Temos ainda uma infinidade de espécies, paisagens e culturas. Algo único no mundo. O que precisamos, o quanto antes, é aprender a crescer sem destruir.

– O que o Poder Público precisa fazer a respeito?

Priorizar o meio ambiente, saber aproveitar a riqueza para crescer de forma sustentável. O Brasil reúne todas as condições para ser referência mundial em conservação do meio ambiente. O planejamento costeiro é essencial. Tem uma imagem da Nasa, à noite, que mostra a ocupação humana muito concentrada nas regiões perto do mar. Portanto, precisamos demonstrar mais sabedoria na hora de ocupar a zona costeira, precisamos de planejamento urbano, propostas e planos nacionais de gerenciamento costeiro.

– Daí o papel da educação?

A educação tem um papel gigantesco. É a população que paga minha pesquisa, meu salário, paga para os alunos estarem em sala de aula das universidades públicas, como a UNESP. No Brasil, sempre estudei em instituições públicas. Retribuir o que recebi, dar retorno à sociedade, é um dever, que faço com muita satisfação. Não é porque achamos “bonitinho” que defendemos o manguezal. É porque ele é essencial! Trata-se de uma floresta à beira-mar, que retira muito carbono da atmosfera. Quando impactado, parte do carbono retido na lama volta à atmosfera. Já estamos registrando desastres ambientais causados por mais esse desequilíbrio.  E é com a educação que poderemos fazer as pessoas entenderem a importância dos manguezais para a vida delas Por exemplo, os manguezais protegem as áreas costeiras, formando uma barreira física. Na Indonésia, região de muitos tsunamis, os budistas fazem orações e oferendas aos manguezais, assim como fazem com as divindades, pois sabem do papel dos manguezais como protetores da costa. 

– Se uma floresta é devastada, temos a chance de replantá-la. Existe essa possibilidade de recuperação no caso dos manguezais?

Em primeiro lugar, quero deixar claro que preservação não é o mesmo que conservação. Conservar uma área é utilizá-la de forma responsável, e não mantê-la intocada. Estamos certos de que é possível explorar a natureza, sem causar danos ambientais, sem sermos predatórios. Temos grupos trabalhando em restauração. Envolvendo comunidades, o que é ótimo e transformador. Mas um manguezal pertence a um local específico, o entorno todo se ressente quando ele é destruído, mesmo que surja outro em outro lugar. Replantar longe dali não é a mesma coisa.

– Há desequilíbrio de gênero na área de biologia e pesquisa?

Na biologia, não senti desproporção entre o número de estudantes homens e mulheres, pelo menos nada significativo. No curso de engenharia de pesca também há um certo equilíbrio. Já entre os docentes, a diferença é gritante. Também por isso eu tenho um grupo de pesquisa Monitoramento Integrado de  Manguezais (http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/7663628607577460, @mangrove.monitoring), que reúne várias pesquisadoras e um dos enfoques do estudo é exclusivamente composto por mulheres. Antes, as equipes eram mais masculinas do que femininas. Em 2012, não havia homens em uma equipe que eu montei – totalmente por acaso. E percebi que, apesar dos equipamentos pesados, dava para funcionar perfeitamente assim. As mulheres podem, sim, fazer todas as atividades, mesmo as que exijam grande esforço físico e espírito de aventura e. Por que não? 

– E na remuneração dos profissionais?

O salário em universidades é igual. Na pesquisa, ainda há um caminho a percorrer. Fapesp e CNPq já começaram a entender que a mulher, com filhos, vai, naturalmente, ter uma redução de produtividade. Está havendo um reconhecimento dessa especificidade. Quando tive meu filho, em 2004, optei por suspender a bolsa para me dedicar exclusivamente à maternidade. Eu queria me poupar da pressão de produção. Aí, cinco ou seis meses depois, voltei a me dedicar e terminei o doutorado. Quanto à representatividade, vou participar de um evento internacional sobre manguezais, em julho. Faço parte do comitê científico, mas pude verificar que a proporção de mulheres em relação aos homens ainda é menor. É porque os homens estão na coordenação do evento, nas decisões. Para mudar isso, precisamos de grande envolvimento das mulheres. E também dos homens, pois é uma questão de todos. É meu papel, como mãe de um rapaz que agora está com 18 anos, conscientizá-lo nesse sentido.

– Do que se orgulha no passado e o que projeta para o futuro?

As duas coisas se misturam. Acho que coordenar o grupo de mulheres trabalhando nos manguezais é meu grande orgulho. É um projeto necessário, importante para as futuras gerações. Dá muita satisfação ver mulheres que passaram pelo grupo e que hoje estão por aí, se destacando no mercado. O que eu quero para o grupo é a consolidação de uma estrutura melhor fisicamente. Estou num campus pequeno. Quero mais estrutura e também projeção internacional. Tudo isso faz parte de lutar pela conservação dos manguezais e que essa luta seja relevante não só no Brasil, mas no mundo inteiro.

 

 

 

 

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