O Brasil como resposta ao Plano Marshall de Energia Limpa proposto por Brian Deese

Escrito por Paulo C. Miranda

No meu retorno da Climate Week em Nova York, li o excelente artigo de Brian Deese do MIT: “The Case for a Clean Energy Marshal Plan: How the Fight Against Climate Change Can Renew American Leadership”, publicado na revista Foreign Affairs./1

Deese serviu no governo de Barak Obama e mais recentemente no governo do Presidente Biden. Ele também atuou nas negociações do Acordo de Paris e ocupou a posição de Líder Global para Investimentos Sustentáveis na Black Rock. Mas, o mais me toca na carreira de Deese é o fato de ele também ter atuado como junior fellow no prestigiado Carnegie Endowment for International Peace. Me identifico e me conecto com ele pelo meu histórico profissional, quando servi junto aos organismos internacionais nas missões internacionais de paz; por ter tido também o privilégio de colaborar com o ex-presidente americano – Jimmy Carter, através do Carter Center, em missões humanitárias; e em outro momento por ter me beneficiado dos programas de capacitação do United States Institute of Peace no período em que residia em Washington, DC.

No artigo, Deese defende a criação de um plano abrangente e ambicioso — que ele chama de Plano Marshall para Energia Limpa, que tem por objetivo acelerar a transição energética global, propondo que os Estados Unidos lidere este esforço.

Ao comparar a necessidade de uma transição energética massiva com a reconstrução proporcionada pelo Plano Marshall após a Segunda Guerra Mundial e propor essa nova agenda liderança para os Estados Unidos, Deese tem seu mérito. No entanto, resta saber se tal proposta é realista diante da complexidade da crise climática e dos desafios geopolíticos contemporâneos.

Neste momento, a liderança americana não está definida e há incertezas sobre sua capacidade de liderar esse esforço de maneira efetiva e inclusiva. Esta proposta não só corre o risco de já estar atrasada, mas também não endereça um problema decorrente de um contexto político fragmentado ou das sequelas da Segunda Guerra Mundial, o que justificaria, mesmo que parcialmente, a tese sustentada pelo autor.

A questão climática não é só ambiental e não é parte de um lado ou de outro da geopolítica atual, mas pode e está sendo utilizada para tal fim e parte da tese de Deese sugere isso. Embora Deese proponha uma abordagem pragmática, questiono se ele realmente se afasta tanto de um idealismo latente que sirva para combater as mudanças climáticas.

A corrida pelo domínio das fontes de recursos energéticos que garantirão uma hegemonia econômica (pretendido pela China principalmente), ditará o curso de como seremos capazes de lidar com a crise climática e forçará, como já vemos no caso do impacto nas economias da Europa com a guerra da Ucrânia, um novo modelo de “Guerra Fria” — neste caso, um período que arrisco dizer de “Guerras Frias Energéticas”.

Quem detiver ou controlar o maior estoque de fontes de energias renováveis terá um assento garantido nas mesas que decidirão o curso dos novos arranjos geopolíticos, comerciais e de segurança global. Para isso, a tese poderia funcionar.

Mas, se nenhum outro país ou bloco de países alinhados à política externa norte-americana se posicionar numa eventual investida para um novo Plano Marshall, o Brasil precisará fazê-lo.

Devemos nos posicionar de forma ativa em qualquer investida relacionada a energia limpa, não apenas como um dos principais players da agenda climática, mas como um co-líder capaz de influenciar e moldar os rumos dessa transição global.

O país precisa estar preparado para desempenhar um papel protagonista, promovendo seus interesses e liderando alianças internacionais que fortaleçam sua posição no cenário climático.

Um exemplo de estratégia clara seria a ampliação dos investimentos em tecnologias de energias renováveis, como o hidrogênio verde, destacado na Política Nacional de Transição Energética (PNTE). Além de aproveitar seu vasto potencial em recursos naturais, o Brasil tem demonstrado capacidade significativa de inovação tecnológica no setor energético, com destaque para pesquisas avançadas em biocombustíveis e eficiência energética.

A implementação de projetos de hidrogênio verde, combinada com essa inovação, pode posicionar o Brasil como líder global no desenvolvimento de uma nova matriz energética. Ao mesmo tempo, o Brasil pode buscar uma cooperação equilibrada com os EUA, trabalhando conjuntamente para fortalecer cadeias de fornecimento e compartilhar avanços tecnológicos, garantindo sua competitividade internacional e um papel estratégico nas negociações globais sobre energia limpa.

Como nação, tudo isso vai muito além da visão de um ou outro governo. Precisamos estar não só alinhados com qualquer avanço desta agenda, mas em condições de criar uma nova balança de equilíbrio geopolítico maior.


O Plano Marshall

Considerado até hoje um dos mais importantes e mais sofisticados processos decisórios de geopolítica até a primeira metade do século XX, o Plano Marshall (1948-1952) promoveu um profundo redirecionamento de forças políticas com um refinado olhar no domínio econômico industrialista do mundo pós-guerra. As economias ocidentais na Europa viram-se diante de um gigantesco caos e não tiveram outra escolha a não ser oferecer ao governo do então presidente Franklin D. Roosevelt, um “salvo-conduto”. Internamente, foi um alinhamento político engenhoso para a formulação do que seria o mais ambicioso programa de recuperação econômica que se conhecera até o momento e garantir a supremacia competitiva e industrial norte-americana./2 Para um presidente que era muito questionado sobre sua agenda econômica e visto com pouca determinação para tal, a história nos mostrou outro caminho.

Roosevelt não tinha a determinação ou a influência legislativa necessária para promulgar programas realmente grandes para estimular a economia, muito menos imaginar assumir tal agenda após o fim da Segunda Guerra Mundial.

No entanto, a guerra tornou isso não apenas possível, mas necessário; e Roosevelt chegou a um acordo com essa realidade, influenciado pelo pragmatismo imoderado de Marshall.

Roosevelt sabia que era necessário que o governo gastasse em uma escala antes inconcebível, restaurando (internamente) o pleno emprego pela primeira vez desde a grande depressão de 1929, ao mesmo tempo em que mantinha um controle firme sobre a recuperação econômica na Europa.

Mais do que isso, o Plano Marshall não foi um presente para a Europa ou uma política para impulsionar a economia americana internamente e, sim, uma estratégia geopolítica cuidadosamente desenhada para conter a expansão soviética e a consequente resultante: a Guerra Fria. No final, FDR se tornaria um grande presidente.


Liderança Geopolítica

Traçando um paralelo, Deese argumenta que da mesma forma como o Plano Marshall serviu para revitalizar a economia europeia e consolidar a liderança geopolítica dos EUA de contenção ao comunismo, uma abordagem similar voltada para a crise climática e suas implicações com o avanço de domínio sobre energia limpa poderia impulsionar a inovação tecnológica, o crescimento econômico e fortalecer as alianças globais dos EUA.

Deese também dá grande importância ao fato de que a questão da transição energética é — como de fato sabemos — um desafio de escala global e que, portanto, somente os EUA, como a maior potência econômica e tecnológica do planeta, poderá dar o impulso necessário para, novamente, mostrar um outro caminho.

Ao enfatizar que essa transição não é apenas uma questão moral “de enfrentar a crise climática”, mas também uma estratégia crucial, dado o cenário atual de competição global intensificada, especialmente com a China, o prestigiado Fellow do MIT abre uma fenda para uma nova agenda geopolítica que precisará de uma ampla base de alianças e que decididamente demonstre a vontade de uma nova ordem bem distante das ideologias do ancien régime que prevaleceu durante décadas, refletindo principalmente os interesses das potências ocidentais.

Essa nova ordem internacional, que ameaça a balança de poder das duas maiores potências do mundo, provoca uma expectativa de transformações radicais e agora está sendo quase que substituída por uma nova configuração de poder, onde países emergentes como o Brasil podem se alinhar de forma mais estratégica às forças de equilíbrio e pela dimensão dos impactos que a massiva alocação do capital destinada à contenção dos efeitos da crise climática global poderá trazer.

Por isso, como potência ecológica, o Brasil não poderá se sujeitar a um pragmatismo político sem que também imponha sua própria agenda com ambição. Com cautela e inteligência, o Brasil precisa se distanciar de equivocadas interpretações, trazendo uma perspectiva de liderança e política baseadas em princípios morais absolutos, ideais universais e compromissos éticos intransigentes.

Uma nova consciência e uma nova abordagem para os desafios do próximo ciclo do século XXI são necessários. Refiro-me a uma nova abordagem que seja ao mesmo tempo pragmática e assertiva para lidar com essa nova agenda, respeitando essa visão de mundo, mas evitando cair em um ‘pagan ethos’ — uma postura cética e realista diante dos desafios atuais, distanciada de princípios idealistas ou morais absolutos.

Esta nova agenda, que terá como base uma estrutura de poder nas mudanças climáticas e na transição energética, precisará de um alinhamento próximo e um rol de entendimentos muito claros com a “potência natural” do planeta, o Brasil, para que possa prosperar — assumindo a continuidade de um governo liderado pelos atuais Democratas. A questão é: como nós, brasileiros, como nação, estaremos dispostos para nos posicionar diante deste potencial intento político? Em que medida estaremos preparados para lidar com um novo advento geopolítico que não nos coloque ainda mais como uma nação periférica a despeito do poder colossal da nossa biodiversidade e do nosso arsenal energético sustentável que já possuímos?

Devemos buscar um posicionamento próprio e forte, que possa responder à provocação trazida no artigo de Deese? Eu acredito que sim!


“Política Guerreira”

Mas, antes de responder a esta pergunta, vale trazer uma passagem do livro de Robert D. Kaplan, “Warrior Politics: Why Leadership Demands a Pagan Ethos” /3, quando, fazendo uma leitura da importância do pensamento do General George Marshall, que revela um pouco sobre como essa que foi a maior agenda política no hemisfério ocidental na primeira metade do século XX, conseguiu ditar grande parte do curso da nossa história. Kaplan afirma: “As future crises arrive in steep waves, our leaders will realize that the world is not ‘modern’ or ‘postmodern’, but only a continuation of the ‘ancient’ [referring to ancient history or regime]: a world that, despite its technologies [and innovations], the best Chinese, Greek, and Roman philosophers might have been able to cope with. So, too, would those like General Marshall, who manifest the ancient tradition of skepticism and constructive realism.”/4

Embora Kaplan argumente que ‘o ceticismo e o realismo são categorias amplas demais para orientar efetivamente estadistas’, essa perspectiva não diminui a importância de uma liderança pragmática e realista diante dos desafios globais.

No contexto atual, especialmente com a crise climática e as disputas energéticas, essa abordagem, embora imperfeita, pode ser a mais viável para equilibrar interesses nacionais e globais, especialmente para países emergentes como o Brasil, que deve agir com ceticismo estratégico, mas sem perder de vista suas ambições de liderança.

Acredito que precisaremos mais do que um statesmen para provocarmos um impacto real dessa possível nova ordem. Precisamos de uma nova consciência de nação que comporte um novo perfil de lideranças.

Precisamos, como nação e sociedade, aceitar esta realidade e assumir o papel de uma nação líder em um novo modelo de mundo que emerge. Mesmo guardando um sentimento de que hoje somos uma sociedade que sofre da ausência de espaço para esses potenciais novos líderes e vive uma profunda descrença com isso, que nos obriga a termos que nos amparar em posições passadas e que não nos inspiram em direção a um novo protagonismo, ainda assim, somos um país continental, democrático e diverso; e somos reconhecidos pela importância que temos na pauta de discussões sobre a agenda climática para o planeta.

Por outro lado, buscando uma resposta a quase todos os argumentos trazidos por Deese, como, por exemplo, da forma como podemos nos colocar ante nossa capacidade para investir e desenvolver novas tecnologias sustentáveis, como na produção de baterias, energia nuclear e outras tecnologias de baixo carbono — propostas por ele no seu Plano, nós também podemos trabalhar com políticas de investimento e outras alianças estratégicas que ajudariam a mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

Nós já conseguimos criar uma nova classe de empresas e empreendedores capazes de imaginar e de construir esses futuros. E por último: nós já estamos à frente dos EUA na transição energética muito mais limpa e sustentável — 83% da nossa matriz elétrica é baseada em fontes renováveis, enquanto os EUA contam com apenas 20% de sua energia proveniente de fontes renováveis.

Somos o segundo maior produtor de energia hidrelétrica do mundo, com mais de 60% da nossa energia sendo gerada por essa fonte, em comparação a apenas 6% nos EUA. Sem falar na energia eólica, que já representa 11% da nossa eletricidade, e o avanço acelerado da solar, consolidando nossa liderança na transição energética.

Além disso, as emissões per capita do setor energético brasileiro são muito menores — cerca de 2,2 toneladas de CO₂ por habitante, enquanto os EUA emitem 15 toneladas por habitante. /5

Por esses motivos, precisamos nos preocupar e refutar o argumento ideológico de Deese, quando — na promessa do novo Plano — ele sugere que a liderança em energia limpa deve ser vista não apenas como um ato de generosidade global, mas como uma necessidade estratégica que beneficia os próprios interesses dos EUA, fortalecendo sua posição global em um mundo cada vez mais polarizado e instável. /6

Mas, isso por si só não seria suficiente. Precisamos ir além do realismo construtivo que teve sua origem no plano original do General Marshall e que é trazido por Deese com um novo ingrediente: de que um Plano Marshall de Energia Limpa deverá “ajudar uma coalizão para obter [garantir] um sistema de comércio global mais equilibrado” — o que para mim é quase impossível se pensarmos no atual estágio da guerra comercial entre EUA e China. Tudo isso revela ainda mais a necessidade, se não a oportunidade, de um diálogo amplo sobre qual seria a melhor política para um país como o Brasil para fazer frente, de forma alinhada e em condições de igualdade ao plano proposto pelo autor. /7

O ethos Brazil que fará frente aos desafios da segunda metade do século XXI será o da maior potência natural e ecológica que conhecemos hoje e da mais exuberante sociedade diversa e sustentável do planeta. —

Os principais pontos do artigo de Deese são:

1.	Liderança Global dos EUA na Transição Energética: assumindo a liderança na transição para uma economia de energia limpa, com uma estratégia geopolítica que remete ao Plano Marshall. Uma iniciativa abrangente para acelerar o desenvolvimento e a implantação de tecnologias de energia limpa que poderia revitalizar a economia global e reforçar alianças internacionais.

2.	Alinhamento de Interesses Estratégicos e Morais: na perspectiva de que transição energética deve ser vista não apenas como uma responsabilidade moral diante da crise climática, mas também como uma necessidade estratégica para manter a competitividade dos EUA no cenário global, beneficiando economicamente o país enquanto ajudaria a combater as mudanças climáticas.

3.	Desenvolvimento de Infraestrutura de Energia Limpa: investimento maciço em infraestrutura de energia limpa. Isso estimularia a inovação tecnológica e ampliaria a capacidade de produção, beneficiando tanto os EUA quanto seus aliados.

4.	Competição Global com a China: necessidade de enfrentar a crescente ameaça e competição da China, especialmente no setor de tecnologia de energia limpa.

5.	Benefícios Domésticos e Internacionais: a transição proporcionaria ganhos econômicos internos para os EUA, criando empregos e impulsionando setores em regiões economicamente desfavorecidas, além de reforçar a segurança energética e a resiliência econômica ao mesmo tempo que trará benefícios globais.

Notas e referências:

  1. Edição de Set/Out 2024; https://www.foreignaffairs.com/united-states/case-clean-energy-marshall-plan-deese
  2. Os Estados Unidos forneceram cerca de US$ 13 bilhões (equivalente a aproximadamente US$ 130 bilhões hoje) em ajuda para ajudar a reconstruir essas economias. Em meados da década de 1950, os níveis do PIB na Europa Ocidental estavam geralmente de volta ou excedendo os níveis pré-guerra. Ver em: Michael J. Hogan’s “The Marshall Plan: America, Britain, and the Reconstruction of Western Europe, 1947-1952” (1987); Cambridge University Press.
  3. Warrior Politics: Why Leadership Demands a Pagan Ethos, Robert Kaplan, 1st edition; First Vintage Books Edition, Jan. 2003.
  4. p. 15
  5. Sobre as emissões ver: International Energy Agency (IEA), Global CO2 Emissions report, 2022.
  6. https://news.mit.edu/news-clip/foreign-affairs-5
  7. p.117.

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