Materialidade e Dupla Materialidade – um guia prático!

Por Caio Pinheiro Della Giustina * e Arthur Covatti ** 

A materialidade é um conceito fundamental em qualquer estratégia de sustentabilidade. Originalmente um termo utilizado em contabilidade e círculos jurídicos, a materialidade descrevia questões que seriam consideradas significativas para um investidor razoável (devendo afetar, assim, a construção das peças contábeis). 

Dentro da sustentabilidade, a definição de materialidade foi estendida para descrever questões de importância significativa não apenas para investidores (isto é: com impacto financeiro para os acionistas), mas também para as principais partes interessadas de uma organização (impacto nos stakeholders – de maneira ampla, incluindo também o planeta).

Para empresas preocupadas com práticas de sustentabilidade e ESG, o levantamento da materialidade é essencial para informar e aprimorar sua estratégia, permitindo que se concentrem em iniciativas que criem valor compartilhado para seus stakeholders. 

A origem da dupla materialidade e a materialidade no mundo da sustentabilidade

No contexto dos relatórios de sustentabilidade, o conceito de dupla materialidade trata não apenas de como as empresas impactam o ambiente ao seu redor, mas também são impactadas por medidas de fora da organização. 

Em outras palavras, as organizações preocupadas com dupla materialidade entendem que impactam e são impactadas por investidores, stakeholders, meio ambiente, sociedade, economia e direitos humanos e se orientam tanto pela materialidade financeira, quanto pela materialidade de impacto. 

A materialidade financeira se concentra em como as questões ambientais, sociais e de governança (ESG) impactam uma empresa, adotando uma perspectiva de fora para dentro. Perguntas que as empresas que consideram materialidade financeira costumam fazer: 

– Quais riscos são apresentados por essa questão ou tendência ESG para o meu negócio? 

– Questões trabalhistas ao longo da cadeia de suprimentos, como trabalho forçado ou infantil, apresentam riscos para a minha empresa?

– Como posso aproveitar a crescente demanda de mercado por tecnologia de baixo carbono na minha estratégia de desenvolvimento de produtos? 

– Qual será o impacto financeiro dos riscos e oportunidades ESG no meu bottom line

– Como o aumento dos preços do carbono afetará os custos de energia ou os retornos sobre o investimento dentro do meu portfólio?

– Qual é o valor da dependência da minha empresa em serviços ecossistêmicos, como a polinização?

– Qual é o custo da não conformidade relacionada às questões ESG – por exemplo, o que aconteceria caso uma nova legislação ou o mercado regulado de carbono seja aprovado e minha empresa precise se adequar? 

Já a materialidade de impacto se baseia nos impactos de uma empresa nas causas ambientais, sociais e de governança e adota uma perspectiva inerentemente de dentro para fora. Neste caso, as perguntas mais frequentes são: 

– Qual é o impacto ambiental do meu negócio no clima e no ambiente natural? Qual é a contribuição da minha empresa para o orçamento global de carbono?

– Quais são os impactos ambientais da produção de resíduos da minha operação? Como isso impacta as comunidades do meu entorno?

– Como as práticas do meu negócio podem proteger ou restaurar os ecossistemas locais?

– Qual é o impacto social do meu negócio nos funcionários, trabalhadores ao longo da cadeia de suprimentos e comunidades onde operamos? Como posso criar um ambiente de trabalho para meus funcionários prosperarem?

– Qual papel a minha empresa pode desempenhar na contribuição para sociedades éticas e justas? Como as práticas anticompetitivas podem minar o ambiente competitivo da indústria? 

– Como posso apoiar e fortalecer as instituições locais?

Para responder a essas e outras questões, é fundamental que haja dados granulares, confiáveis, rastreáveis e comparáveis. Hoje, esse é o principal desafio para as empresas e os agentes financeiros. 

De um modo geral, temas da materialidade de impacto acabam (em mais ou menos tempo) virando temas materiais também financeiramente, principalmente quando os impactos gerados pela organização afetam a sua sustentabilidade de longo prazo.

O que diferencia as duas materialidades é o seu princípio de construção. Uma, a materialidade financeira parte de uma perspectiva voltada aos shareholders, mesmo quando incorpora as idéias da sustentabilidade e os temas ESG na sua análise. Já a outra, a materialidade de impacto, busca abarcar os temas relevantes para todos os stakeholders,  inclusive o planeta.

Diferentes abordagens 

As principais normas de relatórios, como SASB, IFRSS, GRI e CSRD, têm diferentes enfoques em relação à materialidade. O debate entre esses padrões está no cerne da definição de materialidade e na forma como as empresas devem considerar e relatar questões relevantes.

Enquanto SASB e IFRS enfatizam a materialidade financeira, a abordagem do GRI, do Relato Integrado e da CSRD é de dupla materialidade, levando em consideração tanto a materialidade financeira, quanto a de impacto. 

IFRS e SASB: Materialidade de Impacto

O IFRS (International Financial Reporting Standards) se destaca como a pedra angular da comunicação financeira global, estabelecendo um idioma contábil comum para empresas de todos os portes e setores. Mais do que um conjunto de regras contábeis, o IFRS representa um farol de transparência e comparabilidade, permitindo que investidores, credores e demais stakeholders avaliem com precisão a saúde financeira de empresas em todo o mundo.

Na última década, a necessidade de um conjunto de normas globais para relatórios de sustentabilidade tornou-se cada vez mais urgente, especialmente para auxiliar o desenvolvimento dos mercados de capitais globais. As normas IFRS já eram observadas por mais de 140 países para a elaboração de relatórios financeiros. No entanto, com o crescente número de jurisdições exigindo a aplicação das normas de sustentabilidade, tornou-se evidente a necessidade de um organismo dedicado exclusivamente a essa área. Nesse contexto, em 2021, foi criado o International Sustainability Standards Board (ISSB). 

Em 2023, o ISSB publicou suas primeiras normas – IFRS S -, que demonstram o compromisso em evoluir com as demandas do mercado, incorporando a sustentabilidade como um elemento essencial da informação financeira. 

Atualmente existem duas normas publicadas, a IFRS S1, que define os requisitos gerais para divulgação de informações financeiras relacionadas à sustentabilidade, e a IFRS S2 que se concentra especificamente em informações relacionadas aos riscos e oportunidades climáticas – (saiba mais: https://deepesg.com/blog/ifrs-s1-e-s2-descubra-impacto-normas-nas-empresas/). 

Ao adotar as normas do IFRS para a sustentabilidade, as empresas não apenas cumprem com obrigações regulatórias, como é o caso de companhias de capital aberto no Brasil, mas também demonstram maturidade e compromisso com a transparência, atraindo investidores que valorizam práticas sustentáveis e governança corporativa robusta.

Vale ressaltar que o IFRS serve de referência para as normas brasileiras de contabilidade. Assim, o Conselho Federal de Contabilidade criou o Comitê Brasileiro de Pronunciamentos de Sustentabilidade (CBPS). Este comitê tem como objetivo o estudo, preparo e a emissão de documentos técnicos sobre padrões de divulgação sobre sustentabilidade e a divulgação de informações dessa natureza, para permitir a emissão de normas pelas entidades reguladoras brasileiras, levando sempre em conta a adoção dos padrões internacionais editados pelo International Sustainability Standard Board – ISSB (saiba mais: Comitê Brasileiro de Pronunciamentos de Sustentabilidade (CBPS) | ::Conselho Federal de Contabilidade:: (cfc.org.br) ). 

Ao longo dos próximos anos, deveremos ver, então, a adoção desses princípios de maneira mais ampla para as companhias brasileiras. 

As normas SASB (Sustainability Accounting Standards Board), cujos conteúdos técnicos servem de referência às orientações construídas pelas normas IFRS, oferecem padrões de divulgação específicos para 77 setores empresariais e um desenho do que é a materialidade provável para cada setor.

Dessa forma, as empresas deverão focar na construção dos seus relatórios contábeis na divulgação de informações ESG materiais financeiras, como parte integrante das demonstrações; pois omiti-las ou distorcê-las pode levar a avaliações incorretas da empresa e decisões financeiras equivocadas. 

O IFRS reconhece dentro da sua construção a existência da materialidade de impactos (apesar de não torná-la parte da construção dos relatórios financeiros), e adota uma abordagem conhecida como “building blocks”, que visa fornecer informações de sustentabilidade de maneira compreensível e adaptável às necessidades específicas das jurisdições, ao mesmo tempo em que mantém a consistência e a comparabilidade das informações financeiras.

Os “Building Blocks” são compostos por três blocos principais – normas de natureza financeira (IFRS); normas de natureza de sustentabilidade (ISSB); e requisitos específicos das jurisdições – e sua estrutura é baseada nas recomendações do TCFD. 

GRI, Relato Integrado e CSRD: Dupla Materialidade

A Global Reporting Initiative (GRI), fundada em 1997, é uma organização internacional independente que desenvolveu o primeiro e mais amplamente adotado padrão para relatórios de sustentabilidade. 

O foco principal da GRI é orientar as empresas a relatarem seus impactos nas três dimensões da sustentabilidade (econômica, ambiental e social), utilizando o conceito de materialidade de impacto para identificar e priorizar questões que podem ter um impacto significativo – positivo ou negativo – em sua operação e no ambiente em que atuam.

Ao mesmo tempo, reconhece e defende a importância da dupla materialidade: “a materialidade financeira e a materialidade de impacto, juntas sob o guarda-chuva da ‘dupla materialidade’, são as únicas formas relevantes de materialidade”. 

“A GRI apoia totalmente esse conceito. Acreditamos que cada direção da dupla materialidade precisa ser considerada por si só. Impactos no meio ambiente e na sociedade não podem ser despriorizados com base no fato de que não são financeiramente

materiais, ou vice-versa. Além disso, uma empresa deve começar com a avaliação do

componente de impacto externo do princípio da dupla materialidade seguido pela identificação do subconjunto de informações que são financeiramente materiais para a empresa e suas partes interessadas”, afirmou Peter Paul van de Wijs, Chief External Affairs da GRI, na introdução do white paper  “The double-materiality concept – Application and issues” – https://www.globalreporting.org/media/jrbntbyv/griwhitepaper-publications.pdf

Criado pelo International Integrate Reporting Council (IIRC), uma aliança internacional de reguladores, investidores, empresas, organismos de normalização, profissionais de Contabilidade, Organizações não Governamentais, entre outros, o Relato Integrado é um framework que trabalha com foco na criação, preservação ou corrosão de valor para a organização e para outros. 

Este valor é manifestado através de alterações nos capitais da organização, causadas por suas atividades e produção, e tem dois aspectos centrais: o valor criado para a própria organização, que afeta os retornos financeiros para os fornecedores de capital financeiro, e o valor criado para outros, que pode afetar a capacidade da organização de criar valor para si mesma. Portanto, uma abordagem da dupla materialidade.

A dupla materialidade também é um conceito central para a abordagem da Corporate Sustainability Reporting Directive (CSRD), já implementada na União Europeia desde 2023, que está promovendo uma expansão significativa do escopo de relatórios de sustentabilidade  obrigatórios por empresas dentro da UE. Trata-se de um marco regulatório ambicioso com implicações relevantes para empresas que atuam na UE.

A CSRD se aplica a um universo mais extenso de empresas, com relação a regulamentações predecessoras,  incluindo grandes empresas de capital aberto e outras com receita ou número de funcionários acima de determinados limites. Essa expansão busca garantir que um espectro mais representativo da atividade empresarial esteja sob o guarda-chuva da regulamentação, capturando impactos mais abrangentes da economia na sociedade e no meio ambiente.

O conceito de dupla materialidade assume um papel central na CSRD. As empresas serão obrigadas a demonstrar como seus impactos sociais e ambientais influenciam seus negócios e perspectivas financeiras, e vice-versa. Essa abordagem bidirecional reconhece a interdependência entre os fatores ESG e o desempenho financeiro, incentivando empresas a considerá-los como elementos intrínsecos à sua estratégia e tomada de decisões.

É interessante perceber que o relato de informações de sustentabilidade podem estar alinhados tanto com os indicadores SASB, de materialidade financeira, quanto da GRI, de materialidade de impacto. 

Os benefícios da adoção da dupla materialidade 

Um processo estruturado de levantamento da materialidade é fundamental para avaliar quais questões são mais relevantes para uma organização e todos os envolvidos com as suas atividades. 

Ele ajuda a identificar riscos e oportunidades que podem vir a afetar o desempenho financeiro, a reputação e a sustentabilidade a longo prazo da organização. Isso permite uma melhor alocação de recursos e a priorização de ações nas áreas mais críticas para os negócios e partes interessadas.

Além disso, promove a transparência, ao comunicar abertamente as questões mais relevantes para a organização, aumentando a confiança das partes interessadas e demonstrando responsabilidade corporativa. Ao mesmo tempo, ajuda a preservar a conformidade com as regulamentações relacionadas à sustentabilidade.

Para companhias empenhadas com as práticas de sustentabilidade e governança, a análise de materialidade é vital para nortear e refinar sua tática nesses domínios. Isso possibilita que a organização foque em empreendimentos que gerem valor mútuo para si e seus stakeholders.

Há ainda um aspecto regulatório em relação ao qual as empresas brasileiras precisam se atentar com relação à materialidade. Como a CVM obriga companhias de capital aberto a realizarem seus relatórios de sustentabilidade com base nas normas IFRS S, elas deverão trabalhar com a ideia de materialidade financeira. Mas, se suas operações tiverem alguma conexão com a União Europeia, provavelmente também precisarão seguir as diretrizes do CSRD, que exige a abordagem de dupla materialidade em seus relatos.

Em resumo, um procedimento organizado de análise de materialidade é imprescindível para garantir o cumprimento de obrigações legais e também para direcionar os movimentos estratégicos da organização, facilitando a identificação de áreas de impacto relevantes e a comunicação clara de seu plano de ação.

* Caio Pinheiro Della Giustina é analista de Sustentabilidade na DEEP

** Arthur Covatti é CEO da DEEP

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